Wednesday, February 18, 2009

A criatividade de Mário Lúcio


Foto: No palco do Café Concerto, Mário Lúcio, Ana Capicua e Carol.

O músico, compositor e cantor Mário Lúcio esteve no I Festival Lusófono de Teatro Intimista de Matosinhos para uma apresentação, brindando a iniciativa que envolve artistas de países que têm em comum não só a Língua Portuguesa, mas outros elementos também.

Natural da Ilha de Santiago, uma das 10 existentes no arquipélago de Cabo Verde (África), aos 7 anos de idade saía pelas ruas a tocar tambor e a recitar poesias. Músico autodidata, cresceu aprendendo a tocar outros instrumentos, a compor e a fazer os próprios arranjos de suas melodias e letras.

No liceu, formou um grupo musical e tocava guitarra e logo integrou-se ao grupo Abel Djassi (que leva o nome de guerra de Amilcar Cabral). Foi estudar Direito em Cuba e montou lá uma banda. No regresso à Ilha de Santiago formou a banda Simentera, gravando quatro discos, numa parceria que durou cerca de 10 anos. Partiu em 2002 para a carreira solo e está em seu terceiro trabalho, Badyo.

“Sempre trabalhei sob a perspectiva da música tradicional com uma leitura contemporânea. Cresci ouvindo todos os gêneros, na diversidade e riqueza com as bases que o país me dá”, reforça Mário Lúcio. O CD Badyo é um verdadeiro mergulho na música caboverdiana. Em cada faixa há explicações do gênero abordado, da origem e dos instrumentos tradicionais e alternativos utilizados para os arranjos.

Didaticamente descritos em Badyo, é possível conhecer os ritmos Batuko, Coladera, Funaná, Colá, Tabanka, Tchoro, Ladainha, Morna. Ritmos que podem ser considerados uma verdadeira miscigenação da cultura musical caboverdiana ou afro-europeia. A África levou para o mundo os seus ritmos, originando outros como, por exemplo, o samba, mas também recebeu influências de ritmos e instrumentos levados por muitos povos.

No texto de abertura está escrito que Badyo é ”o nome por que é conhecido hoje o habitante de Santiago, a primeira ilha a ser habitada no Arquipélago de Cabo Verde. Mas Vadio era todo o negro que recusava a condição de escravo; e, livre, não reconhecia o controlo das instituições sociais dominantes”.

O texto também explica que Badyo “é o ancestral do Homo Criolo. Não só nos trouxe ao mundo como também ao mundo nos levou: para a América do Norte, Antilhas, América Central, Brasil, Argentina, Europa, espalhando e assimilando novos ritmos além-mar, toques e tiques que um dia voltariam em instrumentos como o bandoneón , o cavaquinho, a guitarra, o piano, a harmónica”. Entre outras citações, Mário Lúcio situa que a música de Cabo Verde é mais antiga do que se pensa e mais moderna do que parece.

“Badyo é uma referência do primeiro escravo liberto de Santiago”, diz Mário Lúcio que buscou nestas origens a sonoridade para compor este trabalho. Mistura cavaquinho, violão e outros instrumentos tradicionais aos sons alternativos extraídos de caneca de arroz, tigela, tábua de lavar roupa, panelas, frigideiras, balaios, cestos, milho, água, entre outros.

O resultado é harmoniosamente “puro”, como pontua o músico. “No processo de produção de um trabalho vou tirando as sonoridades que ‘escuto’”, ou sente serem as ideais. “Insiro instrumentos que consigo manejar razoavelmente e quando este ultrapassa a minha capacidade de execução aí chamo outro músico”, revela Mário Lúcio.

Seu instrumento predileto é o violão mas também gosta muito do Corá, “em que a ‘cara’ do instrumento está voltada para o músico e não para o público”, o único neste género, segundo ele; e do acordeão, “que se toca um pouco em cima do coração”.

No terceiro disco de sua carreira, Mário Lúcio contou com a participação de trompetista e violonista alemão, no quarto trabalho recebeu o sax de Manu Dibango, dos Camarões, a participação de Maria João, Mário Laginha e Paulinho da Viola. No primeiro trabalho solo, o músico fez parceria com Luís Represas e Gilberto Gil, que destacam umas entre tantas que teve ao longo de seu percurso.

A pesquisa musical é uma preocupação e característica constante no trabalho de Mário Lúcio. “Busco as raízes africanas e europeias das músicas que faço e partilho com o meu próprio povo que, por vezes, desconhece essas origens”, reforça. Disponibilizar estas informações também revela outro objetivo de seu trabalho que é mostrar às pessoas o roçar de ritmos que se parecem, que estão ligados à musicalidade de Cabo Verde e vice-versa.

“A musicalidade que temos em Cabo-Verde, originária dos séculos XV e XVI, é uma viagem aos ritmos próprios e que chegaram de outras culturas. O Funaná, por exemplo, é executado com acordeão e reco-reco”, explica, o acordeão trazido da região de Trás-os-Montes (Portugal). O Tabanka, segundo o músico, é muito próximo à sonoridade da música brasileira.

Esta autenticidade e sinceridade do artista também passam por outros elementos. Durante a sua apresentação no Festival, Mário Lúcio incluiu no repertório a música de Carlos Puebla, Hasta Siempre, num elo forte com o que até hoje é vivo de Che Guevara, tridimensional, captando o universo de um momento único. “Sente-se o legado e ouve-se Che através desta música”. Mário Lúcio revela que Hasta Siempre, uma das mais belas composições da história da música, sob a sua concepção e conhecida por ele há muito tempo, poderá ser a razão de sua ida à Cuba.

Mário Lúcio faz referência a Dalai Lama, na música Alter, como elemento Samgha da sua comunidade espiritual, como amigo. “Partilhamos os mesmos ensinamentos. Ele (Dalai Lama) me ensinou a usar estes ensinamentos. É um dos seres humanos mais evoluídos. Perdeu a guerra mas não a paz”, diz o músico e reza parte da letra. Mas de acordo com ele, esta música não foi composta pela causa do Tibet, mas pela ‘causa’ em si e poderia ter citado também outros, como “Nélson Mandela ou todo aquele que dá a outra face. A utopia em som. Todo homem que sonhou com justiça, os que sofreram, os que viveram mudanças, escutam essa ‘música’”.

Sobre a participação no Festival Lusófono, Mário Lúcio ratifica que deu o seu aval e apoio pela iniciativa desde o inicio. “A Lusofonia não se resume na língua. É um espaço de gente, de pessoas que têm em comum a passagem de Portugal e de portugueses. Na verdade é um legado histórico que não pertence a nenhum país. É a culinária, os elementos musicais, o vestuário, a caligrafia, os nomes, sobrenomes e apelidos, os traços genéticos, físicos, e uma certa mentalidade portuguesa que nós temos e que faz parte de nossos conflitos internos”.

Mário Lúcio defende a criação de uma entidade independente, a criação de um espaço, com a participação de intelectuais, músicos e outras pessoas de outros lugares como também Benin, Goa”.

Em Badyo as letras das músicas estão na língua crioula caboverdiana, com observações em português e tradução das letras para o inglês. Esta opção, em passar a letra original para a inglesa é explicada por Mário Lúcio como uma “escolha de equilíbrio, de uma língua que pouca gente fala bem e outra que todo mundo fala mal”. Ele defende que a gramática do futuro é o “entendimento”.

“Sempre traduzo minhas músicas diretamente para uma língua”, o que já o fez em Português, Inglês e Francês, a fim de preservar a pureza dos significados que cada idioma requer adequadamente. Do próximo disco só conseguiu-se saber que haverá músicas traduzidas para o Espanhol. Mário Lúcio lançou Badyo em Junho de 2008. Sua turnê já incluiu Brasil, Portugal, França, Alemanha, Áustria, Luxemburgo, República Checa e Suíça.

Outras rotas e Filhos da Ilha

O atual trabalho de Mário Lúcio traz alguns significados de termos em ‘Outras Rotas’. Entre os exemplos, o autor cita que um dos ritmos dos Nawabas arábico-andaluzas, ligado à temática do lamento, do amor, da partida, da poesia, chama-se Qudâmm, que se crê estar na origem da palavra saudade. “Filhos da Ilha”, escrito por Mia Couto, fecha o disco com um texto sobre a música de Cabo Verde e o trabalho de Mário Lúcio.

Na área comum do Residencial Senhor de Matosinhos, Mário Lúcio se despede e para o público deixa uma mensagem: “leiam “Mensagem”, de Fernando Pessoa”.

Gêneros do disco Badyo:

Batuko – A primeira música das ilhas, nascida da toada mandinga, do toque bantu, do canto wolof. (Canção Amar Elo (Aflor)).

Colecho – Ritmo do pilão, o toque alternado de quatro no interior e no exterior do pilão, quando quatro mulheres pisa o milho para o xerém, nas festas de S. Filipe, no Fogo. Nascido em Santiago, do cruzamento entre toques de África e tambores de Europa. (Canção Alter).

Cimboa – É um instrumento. Simboliza o Batuko; o cavaquinho, a Coladera; a gaita, o Funaná; e as vozes e a percussão, a Tabanká. (Canção Corre Xintidu).

Funaná – Ritmo nascido por volta do séc. XIX; toques Bantus, instrumentos alemães, acordeão diatongo, trazidos da região de Trás-os-Montes (Portugal), todos vindo de uma cadência vindos do sul de África. (Canção Diego e Cabral).

Tabanka e Funaná – As nossas primeiras danças em que homem e mulher se viram fundidos num só. (Canção Dodu).

Coladera-Samba – Um dos novos ritmos do cruzamento e da viagem inversa, na época em que os marinheiros brasileiros tocavam o porto do Mindelo. (Canção Maremar).

Coladera – What Country is this? (Canção Maria na Spedju).

Coladera – É claro que aqui colou costela Congo e Mandinga. (Canção Goré).

Tchoro – Em Cabo Verde quando se chora, canto e pranto se confundem. Chorar assim chegou a ser proibido por ordem do Rei. (Canção Nhu Ariki).

Funaná lento – Ritmo que os gaiteiros chamam de Santiago na gaita, que Kaká Barboza apelidou de Funamba. (Canção Pretty Down).

Ladainha – Missa negra cantada a quatro vozes em Latim. Em Santiago ainda se usa para nos despedirmos dos mortos e aliviar-lhes das faltas cometidas. Herança dos Fulas, dos Balantans, dos Hamar da Etiópia. (Canção Reza 1).

Funaná – Do interior do interior de Santiago, do interior do exterior, do Ocidente de África, da África do Ocidente (Canção Santo Amado).

Funaná de tchaskan, isto é, cru, natural, originalmente tocado com acordeão diatongo e uma barra de metal como percussão. (Canção Scodja).

Coladera-samba – Aqui chamado. Mas o Tango é aqui chamado também. (Canção Simples Sample)

Tabanka – De todos, das tradições europeias, dos rituais e danças africanos, dos primeiros instrumentos da Ilha, de Santiago para o carnaval brasileiro. (Canção Strela).

Morna – Nascido entre Brava e Boa Vista, no final do séc. XIX. A sagração da universalidade Crioula em Cabo Verde. (Canção Um mar de mar).


Breve Currículo: Mário Lúcio
Natural de: Ilha de Santiago
Idade: 44
Formação: Direito e músico autodidata
Discos: 7

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